O Estado português deixa que se violem sistematicamente o segredo de justiça e o direito de reserva da vida privada, e assobia para o lado. Posso testemunhá-lo. Disse isso mesmo à Senhora Procuradora-Geral da República, de quem se espera que seja a guardiã dos direitos de cidadania. E que faça o que lhe compete.
Explico-me.
Primeiro, o romance de cordel.
Desconheço a dimensão da matilha, mas sei que, ainda que pouco inteligente, obedece ao dono que a mandou ir "chatear o camões". Só percebeu a terminação, mas veio. Literalmente.
Razões sanitárias inibem-me de dizer o nome da Coisa publicada que nas últimas horas, e provavelmente nas próximas, mente com todas as letras, procurando atingir o meu nome, Afonso Camões, e, por esta via, tentar minar os laços de confiança e de credibilidade na relação com os leitores que fazem do Jornal de Notícias um grande jornal nacional, sustentável, vencedor e orgulhoso da sua pronúncia do Norte.
A Coisa publicada - que lidera em Portugal o triste campeonato das condenações e dos crimes por difamação, abuso de liberdade de imprensa, de violação do direito de reserva da vida privada e outras malfeitorias escritas que tais - mente e manipula, sabe que o está a fazer, mas vai ter que responder por isso, mais uma vez. Associa-nos a um fantasioso plano conspirativo para a tomada do poder na comunicação social, a mando do antigo primeiro-ministro José Sócrates. Esse mesmo, aperreado há 59 dias sem culpa formada, detido preventivamente por suspeitas de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal.
A "novidade" que trazem, de mau "jornalismo", é velha de mais de 40 anos, tantos quantos os da relação de amizade que mantenho, com gosto e desde a minha juventude, com Sócrates.
E dizem que o avisei que ia ser detido. E que terá sido em maio, quando eu integrava a comitiva do presidente da República à China e a Macau. Ora, se o avisei, e se foi em maio, eu era administrador e presidente da Agência Lusa. Logo, não estava jornalista, muito menos diretor do nosso Jornal de Notícias. E, pelos vistos, nem sequer havia processo.
É verdade: disse-me um jornalista do grupo empresarial da Coisa que a prisão de Sócrates estava iminente. Esse mensageiro cometeu um erro: quando se tem uma informação relevante, o primeiro dever de cidadão de um jornalista livre, pesados os seus direitos e responsabilidades, é para com os seus leitores.
Ele deveria ter publicado a informação, que lhe veio, disse-me depois, por um seu camarada, diretamente da investigação, liderada pelo juiz Carlos Alexandre e pelo procurador Rosário Teixeira. Erro maior, criminoso, é ser verdade essa possibilidade: que a fuga de informação veio dos agentes da justiça, ou seja, de onde menos podemos admitir que se cometam crimes de violação do segredo de justiça.
Sim, eles falam com jornalistas!
Durante meses, o caso parecia ter ficado por ali.
Mas basta uma pequena ponta de verdade para sobre ela fazer cair a sombra de uma grande mentira. Depois da detenção de José Sócrates, a 21 de novembro, mas comentada há meses nos meios políticos e jornalísticos, começou a circular nos corredores da intriga que eu teria avisado o antigo primeiro-ministro da sua iminente detenção. Mas, agora, já como diretor do JN, o que configuraria uma grave violação do Código Deontológico. A mentira chegou, plantada, a vários jornais, mas teve sempre perna curta.
O ataque à minha reputação, mas sobretudo à independência e à credibilidade do nosso Jornal de Notícias, levaram-me a pedir uma audiência à Senhora Procuradora-Geral da República. Joana Marques Vidal recebeu-me quinta-feira à tarde, dia 15, na presença do meu diretor-executivo e do diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, Amadeu Guerra, que tutela a investigação ao caso Sócrates, liderada pelo procurador Rosário Teixeira e pelo juiz Carlos Alexandre.
Narrei à procuradora parte dos factos aqui descritos. Mostrei-lhe séria preocupação pela intentona em curso, lesiva e violadora dos meus direitos, liberdades e garantias, e, sobretudo, o gravíssimo atentado à credibilidade deste JN centenário, que atravessou regimes e revoluções, mas que não é nem nunca poderá ser utilizado como instrumento de uma qualquer guerra empresarial, na disputa pelo controlo dos média portugueses.
Falei a Joana Marques Vidal das escutas de que estaria a ser alvo, da violação do segredo de justiça, da tentativa de condicionamento da minha liberdade enquanto diretor de jornal e jornalista, e da necessidade de a procuradora-geral, como guardiã dos direitos dos cidadãos, atuar para impedir esta violência e a continuação destes crimes. Disse-nos nada poder fazer e, candidamente, aconselhou-nos a consultar um advogado...
Diz a Coisa publicada que foi Sócrates que me fez diretor do Jornal de Notícias.
Sou honrosamente diretor deste grande jornal, com o voto unânime do seu Conselho de Redação, depois de ter aceitado o convite dos meus administradores, com o apoio do Conselho de Administração deste grupo empresarial. É perante eles que respondo. E é aos nossos leitores que dou a cara, cada dia.
Aqueles que se cruzaram comigo ao longo de 35 anos de carreira, que me orgulha a mim, aos meus filhos e amigos, sabem a massa de que sou feito.
Trabalhei com zelo e lealdade sob Freitas Cruz, Feytor Pinto, Marcelo Rebelo de Sousa, José Miguel Júdice, Francisco Balsemão, Cunha Rego, Vasco Rocha Vieira. Nos últimos anos, enquanto administrador da Lusa, trabalhei sob sete ministros, ao longo de três governos de diferentes famílias.
Não sou de deixar ninguém para trás. E guardo em casa, entre outras honrarias, a medalha de mérito da minha terra e a Medalha de Mérito Profissional que me foi atribuída em nome do Estado português.
Mas voltemos à audiência na Procuradoria-Geral da República. O diretor do DCIAP, Amadeu Guerra, considera que "não há política neste caso" e, sem que eu o tivesse questionado, sublinhou a confiança dos seus "homens no terreno" (estou a citá-lo), negando, primeiro, ter ouvido as escutas, mas, depois, confirmando ter ouvido mas não tudo.
No dia seguinte, a 16, a Coisa publicada bradava o primeiro folhetim da fantasia conspirativa, pretendendo atingir o presidente do Conselho de Administração da Global Media, Daniel Proença de Carvalho, e os seus administradores.
Quem é essa gente, que atira a pedra escondendo a mão?!
Há mais de 400 anos, Filipe II de Castela, aquele que residiu em Lisboa, topou-lhes o caráter nos avoengos, em carta enviada à mãe para Madrid: gente rasteirinha, daqueles que "sofrem mais com a ventura alheia do que com a dor própria". Dói-lhes de inveja que sejamos sãos, a crescer e melhores do que eles. E estão outra vez enganados: aqui, na casa, cumprem-se regras herdadas de gerações de grandes jornalistas, ao longo de 127 anos, e gostamos de roçar a nossa na língua portuguesa. Mas antes mortos do que na imundície em que esgravatam.
Mais luz sobre este lance põe a descoberto, também, o mais sujo e antigo dos truques das guerras comerciais que todos conhecemos: atirar lama sobre os produtos e as empresas da concorrência, para ganhar vantagem no mercado. É nessas práticas que se revelam os carateres.
Não disputaremos tal terreno.
A liberdade de imprensa não pode ser utilizada em nome do lucro ou de agendas empresariais. Nada é mais importante do que a liberdade. E são ignóbeis quaisquer tentativas de submeter a liberdade a agendas pessoais - sejam elas privadas, ou mesmo públicas.
Não podemos permitir que, a coberto de um caso mediático, empresas nossas concorrentes utilizem a mentira para tentarem ganhar vantagem.
A meses de duas eleições que convocam os portugueses para importantes escolhas, a quem aproveita a tentativa de condicionamento do JN?
Este jornal tem critérios e depende exclusivamente deles. São os da ética e do rigor profissional. Não tem ambições políticas e é indiferente a quem as tiver. Não deve obediências a partidos, autarquias, clubes, empresas ou qualquer sacristia. Mas não é nem será neutral na defesa das grandes causas, pela liberdade e dignidade do homem como medida de todas as coisas.
Contra o centralismo, a miséria, a ignorância, a inveja e a tirania, não gostamos do jornalismo mole, narcótico ou redondinho. Ao contrário, apreciamos e procuraremos acolher e cultivar a prosa culta, comprometida, por vezes revoltada - e sempre, sempre inconformada. Um jornal são milhões de palavras. E quem as escreve escreve-se a si também, no seu registo histórico.
O JN é um exercício de memória contra o esquecimento. Na batalha contra as desigualdades e na afirmação da solidariedade inclusiva, em primeiro lugar na relação de vizinhança, aí esteve e aí estará sempre o Jornal de Notícias.
Como eu compreendo o Papa Francisco quando, há poucos dias, disse que se alguém lhe ofendesse a mãe "deveria estar preparado para levar um soco". Por mim, hesito em ir às fuças cobardes de quem me quer ofender, porque resisto à ideia de meter as mãos na enxovia.
Até lá, o Senhor lhes perdoe, que eu não posso.