Personagens
e Cenário: (1) Ana Francisca, mulher sádica, com cifrões implantados nos
olhos, capaz de todas as tropelias contra a natureza, contra o Estado e contra
as pessoas, não abdicando dos mais abjectos meios, das mais sujas manigâncias,
mesmo escravizar os trabalhadores das vinhas, envenenar o marido para colher a
fortuna e gozar a aveludada alcova, estendida ao comprido com garanhões
potentes e poderosos agentes da Administração Pública; (2) Dr. Tomás,
político muito influente e muito influenciável, com poiso em gabinete
governamental, sedento de dinheiro e outras prebendas e não menos de fofos
colos almofadados por seios bem salientes e de frémito fácil e intenso e
apelativos de delicadas e eróticas dentadas; (3) Vários outros personagens não
intervenientes nesta cena da peça. (4) Cenário Natural: Encosta do Douro
Vinhateiro, agora Património da Humanidade, classificação para obtenção do qual
colaborou o Dr. Tomás nas conversações com a Unesco.
Depois de lauto e cerimonioso almoço, montados em
luxuosa charrete (Ana e Tomás) tirada por dois garbosos cavalos luxuosamente
arreiados, chegaram ao topo do melhor vinhedo, mesmo no cume da maravilha que é
aquele Património da Humanidade. As conversas eram surdinadas para que o
cocheiro, serviçal não muito confiável, as não colhesse, a nenhum pretexto.
Admirando a magnificência da paisagem com a fita do
Douro lá no fundo, diz ela:
“ –
Sabe que tenciono construir aqui, neste oásis do Douro, um hotel de cinco
estrelas? Um hotel de cinco estrelas com duas suites no último piso. Logo, em
intimidade, falaremos mais à vontade das suites.
-
Que desperdício de tempo! - E, abanando a cabeça – A minha querida amiga sabe
que esta é uma Área Protegida! Hoje em dia, construir numa área protegida é
muito complicado! A milionária, não gostando do reparo, e,
impaciente, começou a andar de um, lado para o outro.
-
Que encrenca, Dr. Tomás! Onde já se viu uma coisa destas? Portugal precisa de
crescimento, de se desenvolver à custa das suas belezas naturais. A região do
Douro Vinhateiro reúne as mais interessantes potencialidades turísticas. Nos
roteiros turísticos mundiais, o Douro Vinhateiro figura em lugar de destaque. O
Dr. Tomás ficou calado por alguns momentos. Ambicioso por natureza, estava sempre
receptivo às oportunidades de ascensão na carreira, sobretudo as que eram
susceptíveis de aumentar o seu património material (……) O Dr. Tomás pediu o
binóculo e pôs-se a observar.
-
A Ana Francisca projectou construir o hotel onde? – Aqui neste miradouro. Os
turistas que se instalarem neste local para uns dias de repouso irão certamente
ficar deslumbrados com esta maravilha da natureza. O Douro visto deste pináculo
é o paraíso na Terra. Respira-se aqui um silêncio de princípio do mundo.
-
Faça o favor de submeter o projecto aos técnicos competentes, Ana Francisca. –
E, como que a dar esperanças – Estamos numa área protegida, mas verei o que
posso fazer. Sou um homem de poder, mas não sou Deus. (……) – O meu marido nunca
prestou para nada. O Afonso Noronha era um iceberg na cama. – A Ana Francisca
diz ter uma proposta aliciante para me fazer. Que proposta?
(…………………)
A proposta que tenha para lhe fazer está relacionada
com o hotel de cinco estrelas. Como lhe disse, Tomás, o projecto contempla a
criação de duas suites de luxo no último andar (…..) Uma das suites será
registada em seu nome. Não lhe agrada, meu querido? - …. Seja clara, Ana
Francisca. Está a dizer-me que a suite passaria para meu nome através de uma
compra fictícia? – Nem mais. A suite será sua sem investir um cêntimo. Desde
que o Tomás consiga tornar viável a implantação do hotel numa área protegida…..
O meu amigo já me deu a entender que o projecto tem pernas para andar.”
Todos os diálogos foram transcritos, ipsis verbis, da
obra CORRUPÇÃO, de Flávio Capuleto. A descrição do cenário e todos os elementos
ao redor foram inspirados na mesma obra. E, a talhe de foice, quer o
desenvolvimento parlatório, a área protegida, Património da Humanidade, ou
património da ecologia ou da agricultura ou defesa de linha de água, o recurso
à influência para a viabilização da implantação, transporta-nos para a célebre
frase, dita em Caldas de S. Jorge: “Se não fosse o meu irmão, isto (um
edifício) não teria sido construído ali.” Zona de reserva.
José
Pinto da Silva